Análise do Discurso

AS FORMAÇÕES DISCURSIVAS DO SUJEITO NO CONTO CHAPEUZINHO VERMELHO, DE RUBEM ALVES


Wolney Jácomo de SOUSA .


Resumo:

Tendo em vista que um discurso não é formado a partir do eu, mas, sim, do outro, verificar-se-á à luz da Análise do Discurso Francesa – ADF – como a influência do capitalismo determina a noção de poder diante da sociedade, o que gera, ainda, no ser humano, a necessidade em viver de aparências. Assim, este artigo tem o objetivo de observar as Formações Ideológicas – FI – e as Formações Discursivas – FD – do sujeito tecidas no conto parafrástico, Chapeuzinho Vermelho, de Rubem Alves. Para a realização deste trabalho fez-se importante a utilização de teorias voltadas para a AD, entre eles, cita-se: Charaudeau e Maingueneau (2006), Fiorin (2003), Mussalim e Bentes (2001), Orlandi (2005).

Palavras-chave: formação ideológica; sujeito; chapeuzinho vermelho; formação discursiva

 

1. Introdução

 

Antes de se iniciar a análise propriamente dita, é importante ressaltar o contexto histórico de produção do enunciado. Isso é necessário, pois para a Análise do Discurso – AD - não somente o enunciado se faz importante, mas também o momento de produção do mesmo. Dessa forma, o corpus escolhido, a crônica parafrástica Chapeuzinho Vermelho, foi escrito pelo escritor Rubem Alves e publicado no ano de 2002, no jornal Correio Popular. A paráfrase é um recurso utilizado pelo autor para atribuir um novo sentido para a sua estória, assim, a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo, e a polissemia é a fonte da linguagem uma vez que ela é a própria condição de existência dos discursos, pois se os sentidos - e os sujeitos – não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de dizer. A polissemia é justamente a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico. (ORLANDI, 2005, p. 38) Por meio das palavras do próprio autor é possível ilustrar a sua motivação ao renarrar a estória infantil sob a óptica contemporânea: Há jeitos de falar e jeitos errados de falar. Jeito certo de falar é aquele que está de acordo com a ideologia. Jeito errado de falar é aquele que não está de acordo com a ideologia – heresias. As heresias na fala não podem ser toleradas. Tem de ser eliminadas. Daí me deu um impulso de reescrever a estória Chapeuzinho Vermelho para os dias de hoje, seguindo as linhas da PC language, PC language, politically corret language, mesmo porque não há criança que acredite na estória como foi escrita. (ALVES, 2009) A partir da leitura da crônica em estudo pôde-se observar que a linguagem trabalhada na elaboração do texto não é mais a mesma que àquela outra utilizada na primeira versão da estória direcionada ao público infantil. Além desse aspecto, consideraremos, também, que as situações, a visão de mundo, bem como as formações ideológicas inscritas na versão tradicional eram outras. Certifica-se, portanto, que o contexto histórico-social, então, o contexto da enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerado. Pode-se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos. (MUSSALIM; BENTES, 2001, p. 131)

 

2. Apresentação do corpus: Chapeuzinho Vermelho, Rubem Alves.

 

Era uma vez uma jovem adolescente a quem todos conheciam pelo apelido de Rúbia. Rúbia é uma palavra derivada do latim, rubeus, que quer dizer vermelho, ruivo. Rúbia era ruiva. Ruiva porque tingira o seu cabelo castanho que ela considerava vulgar. Ela pensava que uma ruiva teria mais chances de chamar a atenção de um empresário de modelos que uma morena. Morenas há muitas. O vermelho dos seus cabelos era confirmado pelo seu temperamento: ela era fogo e enrubescia quando ficava brava. Rúbia morava com sua mãe numa linda mansão no condomínio "Omegaville". Pois numa noite, por volta das 10 horas, sua mãe lhe disse: "Rubinha querida, quero que você me faça um favor..." Rúbia pensou: "Lá vem a mãe de novo". E gritou: "De jeito nenhum. Estou vendo televisão...". "Mas eu ia até deixar você dirigir o meu BMW...", disse a mãe. Rúbia se levantou de um pulo. Para guiar o BMW ela era capaz de fazer qualquer coisa. "Que é que você quer que eu faça, mamãezinha querida?", ela disse. "Quero que você vá levar uma cesta básica para sua vovozinha, lá no Parque Oziel. Você sabe: andar de BMW, depois das 10 da noite, no Parque Oziel é perigoso. Os seqüestradores estão à espreita..." Rúbia já estava saindo da garagem com o BMW quando sua mãe lhe gritou: "A cesta básica! Você está se esquecendo da cesta básica!" Com a cesta básica no BMW Rúbia foi para a casa da vovozinha, no Parque Oziel. Foi quando o inesperado aconteceu. Um pneu furou. Até mesmo pneus de BMWs furam. Rúbia se sentiu perdida. Com medo, não. Ela não tinha medo. O problema era sujar as mãos para trocar o pneu. Foi quando uma Mercedes se aproximou dirigida por um senhor elegante que usava óculos escuros. Há pessoas que usam óculos escuros mesmo de noite. A Mercedes parou e o homem de óculos escuros saiu. "Precisando de ajuda, boneca", ele perguntou? "Claro", ela respondeu. "Preciso que me ajudem a trocar o pneu furado". "Pois vou ajudar você" disse o homem. "Você precisa de proteção. Esse lugar é muito perigoso. A propósito, deixe que me apresente. Meu nome é Crescêncio Lobo, às suas ordens". Aí ele se pôs a trocar o pneu cantarolando baixinho uma canção que sua mãe lhe cantara: "Hoje estou contente, vai haver festança, tenho um bom petisco para encher a minha pança..." Rúbia, olhando para o Crescêncio Lobo, pensou: "Que homem gentil e prestativo! E ainda canta enquanto trabalha... É dono de uma Mercedes! Acho que minhas orações foram atendidas!" "Pronto", ele disse. "Para onde você está indo, boneca?" "Vou levar uma cesta básica para minha avó." "Pois eu vou segui-la para protegê-la..." E assim, Rúbia, sorridente sonhadora, se dirigiu para a casa de sua avó escoltada por Crescêncio Lobo. Ao chegar à casa da avó Crescêncio Lobo se surpreendeu. Pensou que ia encontrar uma velhinha, parecida com a avó de Chapeuzinho Vermelho. Que nada! Era uma linda mulher, uma senhora elegante, fina, de voz suave, inteligente. Logo os dois estavam envolvidos numa animada conversa, Crescêncio Lobo encantado com o suave charme e a inteligência da avó, a avó encantada com o encantamento que Crescêncio Lobo sentia por ela. Crescêncio Lobo pensou: "Se não fossem essas rugas, ela seria uma linda mulher..." Rúbia percebeu o que estava rolando, e foi ficando com raiva, vermelha, até que teve um ataque histérico. Como admitir que Crescêncio Lobo preferisse uma velha a uma adolescente? Começou a gritar, e por mais que os dois se esforçassem, não conseguiram acalmá-la. Passava por ali, acidentalmente, uma viatura do 5º Distrito Policial. Os policiais, ouvindo a gritaria, imaginaram que um crime estava acontecendo. Pararam a viatura e entraram na casa. E o que encontraram foi aquela cena ridícula: uma adolescente ruiva, desgrenhada, gritando como louca, enquanto a avó e o Crescêncio Lobo tentavam acalmá-la. Os policiais perceberam logo que se tratava de uma emergência psiquiátrica e, com a maior delicadeza, (os policiais do 5º DP são sempre assim. Também pudera! O delegado chefe trabalha ouvindo música clássica!) convenceram Rúbia a acompanhá-los até um hospital para ser medicada. Rúbia não resistiu porque ela já estava encantada com a força e o charme do policial que a tomava pela mão. Afinal, aquele policial era lindo e forte! Quanto à avó e ao Crescêncio Lobo, aquela noite foi início de uma relação amorosa maravilhosa. Crescêncio Lobo percebeu que não há cara de adolescente cabeça-de-vento que se compare ao estilo de uma senhora inteligente e experiente. E a avó, que ouvira de uma feminista canadense que o melhor remédio para a velhice são os galetos ao primo canto, entregou-se gulosamente a esse hábito alimentar gaúcho. Crescêncio Lobo pagou-lhe uma plástica geral e a avó ficou novinha. E viveram muito felizes, por muitos anos. Quanto à Rúbia, aquela crise foi o início de uma feliz relação com o policial do 5º DP, que tinha um mestrado em psicologia da adolescência...

 

3. As Formações Discursivas do sujeito na paráfrase Chapeuzinho Vermelho.

 

Na versão descrita por Rubem Alves, verifica-se que os actantes se distanciam dos sujeitos personagens da anterior, seja nas características físicas, seja nas comportamentais e, até mesmo, nas questões econômicas. Conforme Charaudeau (1988 apud CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2006, p. 458) “o sujeito do discurso é, ao mesmo tempo, sobredeterminado – mas somente em partes – pelos condicionamentos de ordem diversas, e livre para operar suas escolhas no momento de focalizar o seu discurso”. O sujeito Rúbia, ocupando o lugar de Chapeuzinho, não possui mais aquela inocência e, tão pouco, aquela singeleza. A mãe de Rúbia, também, não carrega consigo a generosidade, ao colocar a sua filha em risco, apenas com a intenção de levar uma cesta de alimentos em benefício da vovó. Tal situação remete-nos a repensar em um contexto inteligível somente para o momento atual, ou seja, para o século XXI. Por meio dessa visão o texto nos permite afirmar que esse tipo de linguagem demonstra (desvela) os fenômenos ou as ideologias ao qual se delineia um discurso. É nesse sentido que, uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, já que ela é constitutivamente ‘invadida’ por elementos provenientes de outros lugares, isto é, de outras formações discursivas, que nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais, por exemplo, sob formas de ‘pré-construídos’ e de ‘discursos transversos’ (PÊCHEUX, 1983, p. 297 apud CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2006, p. 240) Tomando-se como referência a segunda versão de Chapeuzinho Vermelho, buscar-se-á algumas Formações Discursivas – FD - constituintes do discurso de Rubem Alves. Segundo Mussalim e Bentes (2001, p. 125), “o conceito de FD é utilizado pela AD para designar o lugar onde se articulam discurso e ideologia. Uma FD é governada por uma Formação Ideológica (ID)” O primeiro ponto observado diz respeito à faixa etária da personagem, a qual não se trata de uma criança, e sim de uma adolescente. Na contemporaneidade as crianças passam por um processo de antecipação da maturidade, almejando conquistar, precocemente, uma forma adulta, ou reproduzir um comportamento adulto. Isso justifica o fato da protagonista da crônica de Rubem não mais ser uma simples garotinha, identificando-se, então, uma FD etária. Segundo Fiorin (2003, p. 36), “se a consciência é constituída a partir dos discursos assimilados por cada membro de um grupo social e se o homem é limitado por relações sociais não há uma individualidade de espírito [...] absoluta”. Dessa forma, o comportamento da adolescente Rúbia advém de um processo de imitação dos adultos e, de certa forma, por eles incentivado. E a partir dessa concepção, surge o ímpeto de agressividade por parte de Rúbia, que não concebia a idéia de Crescêncio Lobo interessar-se por sua avó, de mais idade, ao invés dela que era jovem e, também, já se considerava uma mulher. Assim, o surto sofrido por Rúbia identifica, ainda, o contraste ente um corpo de mulher estabelecido e uma mentalidade imatura, de criança: e por esse motivo os adolescentes da contemporaneidade apresentam-se despreparados para resolver os seus conflitos, gerados pela dualidade estabelecida pela mistura entre a vida adulta e a vida infantil. Além das características que moldam a personagem Rúbia, outra FD existente é a de ordem capitalista, observado por meio do valor significativo que representa o carro da família “uma BMW”. É possível notar que o favor concedido à mãe de Rúbia somente é realizado em meio aos interesses particulares do sujeito. Assim, os valores não são estabelecidos com bases fraternais que unem a personagem à sua mãe e à sua avó, e sim, em detrimento da ostentação promovida pelo poder do capital, que é tido como artifício de convencimento para se realizar um favor. A FD advinda do fato de o lobo ser a representação de um homem refere-se aos discursos feministas da atualidade; no qual o homem se torna um vilão, e, as mulheres, mesmo que tenham alcançado a sua autonomia, estão sempre na eminência de cair em suas garras. De acordo com Mussalim e Bentes (2001, p. 125): uma FI comporta necessariamente de uma posição capaz de se confrontar uma com a outra. Numa FI as forças não precisam estar necessariamente em confronto; elas podem entreter entre si relações de aliança ou também de dominação. A forma como a avó de Rúbia nos é apresentada na crônica, mostra uma contraposição de idéias: por morar em uma periferia a sua avó poderia ser identificada como uma mulher com poucos recursos, de modo que deveria depender diretamente da ajuda da sua filha, além de aparentar-se, realmente, como uma velhinha, não ser educada e nem ter uma voz suave. Mas o que se verifica é exatamente o contrário, a avó é uma mulher extremamente preocupada em manter a sua boa aparência física, além de ser uma pessoa repleta de bons modos, bonita e elegante. Tais características da avó refletem uma FD baseada no modelo de sociedade capitalista. É nesse sentido que Fiorin (2003, p. 32) entende a formação discursiva como “um conjunto de temas e figuras que materializa uma dada visão de mundo” e, ainda, uma formação ideológica “deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo”. Embora Crescêncio Lobo tenha admirado e se surpreendido com a boa aparência da avó de Rúbia, ele não se dera por totalmente satisfeito. Tal afirmação fica marcada no discurso do pensamento de Lobo: “Se não fossem essas rugas, ela seria uma linda mulher...”. Mais uma vez nota-se que a FD presente neste trecho é o da valorização da aparência jovem em primeiro plano, como fruto de uma FI observada no mundo contemporâneo: é necessário manter a jovialidade do corpo, e, para isso, as técnicas de rejuvenescimento são ofertadas a todo custo pelo mercado. A FD capitalista é também marcada na crônica de Alves, no momento em que ele contrasta a forma de moradia de Rúbia e a sua avó. Enquanto essa mora na periferia da cidade, em meio aos perigos e à criminalidade, aquela vive de forma segura em um condomínio fechado e de luxo. Daí surge uma FI que é a do preconceito, no qual, sob o olhar das classes socialmente favorecidas, as pessoas moradoras da periferia já são vistas como seres marginalizados, é o que constata na fala da mãe de Rúbia: “Você sabe: andar de BMW, depois das 10 da noite, no Parque Oziel é perigoso. Os seqüestradores estão à espreita...” Dessa forma, uma formação discursiva com base capitalista mostra que os interesses particulares são colocados à frente de qualquer negócio e, a imagem de valor material do outro passa a ser o único fator primordial na existência humana. É o que demonstra o discurso tecido no pensamento de Rúbia: “Que homem gentil e prestativo! E ainda canta enquanto trabalha... É dono de uma Mercedes! Acho que minhas orações foram atendidas!”.

 

Considerações finais

 

A partir da análise realizada na crônica parafrástica Chapeuzinho Vermelho, foi possível verificar o quanto a formações ideológicas relacionadas ao poder, ao capital e ao preconceito, se fazem presentes nas formações discursivas da sociedade contemporânea, representada no texto. Essa, por sua vez, traz à tona a grande valorização do poder ter em contraposição com o poder ser. Como consequência do ter, observa-se a destituição dos valores da família, o que gera o desapego, bem como a inversão dos papéis na dita sociedade moderna: os filhos não têm atitudes adequadas à suas idades e os pais fogem às suas responsabilidades. A supervalorização do corpo é criticada por Rubem Alves na sua crônica, visto que viver sob os moldes da aparência torna-se mais importante do que viver sob o desenvolvimento do intelecto humano. Além disso, o texto revela que as pessoas possuidoras dos bens materiais são bem vistas pela sociedade, sem, necessariamente, serem alvo dos preconceitos. Portanto, essa ideologia baseada nas crenças e nos valores do capitalismo imposta pela classe dominante molda a realidade sócio-histórica na qual vive a sociedade do século XXI.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, Rubem. Projeto Releituras. Disponível no sítio: https://www.releituras.com/rubemalves_chapeuzinho.asp, acessado dia 03.06.2009 às 12h45min.

CHARAUDEAU, ; MAINGUENEAU, . Dicionário de Análise do Discurso. 2006.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 2003.

MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras, V. 1. São Paulo: Cortez, 2001.

ORLANDI, Eni. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 6ª Ed. Campinas: Pontes, 2005.